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Ouvir é como um carinho no queixo

Em casa, além de mim, habitam uma colônia de abelhas jataí e três gatas. Duas delas são irmãs e a outra, mais nova, foi adotada no início da pandemia. Anāhitā, a gata mais velha, quando deita em meu colo exige atenção plena. Não basta ela deitar sobre meu corpo enquanto estou lendo, ela me olha fixamente e eu sei que ela quer que eu pare o que estou fazendo para dar o carinho que ela prefere. Coçar, de leve, debaixo de seu queixinho. É estranha esta nossa relação? Não sei. Eu só sei que entendo o que elas dizem, mesmo quando não dizem. Percebo a postura, o que estão tentando me mostrar. Posso garantir que a minha vida já foi salva algumas vezes devido à essa minha capacidade de comunicação com os felinos. Daí me vem uma questão: como podemos não compreender as pessoas com as quais convivemos? Já se perguntou? Quantas vezes ouvimos as outras pessoas, mas não compreendemos o que dizem, o que querem ou o que esperam? Quantas relações tiveram fim sem explicações? Quantas discussões por nada? O que me parece é que ouvimos mal. Não estou me referindo sobre a função física do ouvir. Estou falando que não sabemos realmente ouvir. Penso que para que haja uma boa escuta, uma escuta de qualidade, é necessário abandonar nossos apegos à nós mesmos.


Lembro de uma vez, quando morei em Porto Belo, que um dia passei por duas mulheres de uns quarenta e poucos anos, que estavam conversando em frente a minha casa. Eu vinha caminhando pela calçada, vindo da padaria, e quanto mais eu me aproximava das duas as vozes iam aumentando. O que era de se esperar. Mas o que me causou grande espanto foi perceber que as duas falavam, mas não conversavam. Cada uma delas dizia em moto-contínuo o que queriam ou precisavam dizer naquele momento, mas não estavam em uma conversa. Não era um diálogo. Cada uma em seu solilóquio em voz alta. Não estabeleceram entre si uma conexão linguística. Foi a cena mais aterradora que presenciei. A prova de que duas pessoas podem proferir palavras, uma à outra, sem que haja um diálogo. Triste. Assustador. Depois daquele dia passei a prestar delicada atenção a cada pessoa que manifestar qualquer intenção de diálogo comigo. E isto se estende a todos os seres, gatos, cães, plantas, abelhas… Você pode achar que é um poder extraordinário, mas eu digo que é a única coisa que sabemos fazer e que temos que aplicar diariamente.


Faça um teste! Tem algum vaso de planta perto de você? Como ela está? Seca? Encharcada? Se você perceber isto, já estará conectada a esta planta. A mosca presa, do lado de dentro da janela, batendo e batendo e batendo, ela está pedindo para sair. A pessoa com pouca experiência na direção, que está no cruzamento tentando atravessar uma rua movimentada, ela está comunicando um desejo: deixe-a passar. A avó, a criança ou um amigo que está em um silêncio desconfortável, quem sabe ela queira dizer algo ou fazer outra coisa. A pessoa que te ama e que, diariamente, lhe proporciona boas coisas, uma comida, a roupa limpa, a casa em ordem … já disse a ela que se importa e o quanto tudo o que ela faz melhora sua vida? Já perguntou o que ela deseja de especial hoje?


Ouvir é perceber, tomar consciência por meio dos sentidos.


Ah, minha querida Anāhitā anda chateada, ou eu diria, irritada comigo. Tenho passado tempo demais trabalhando. Preciso dar mais atenção para isto. Mais carinhos no queixo vai nos fazer bem.


Um ano iluminado a vocês!


Deixa-me ouvir o que não ouço...

Não é a brisa ou o arvoredo;

É outra coisa intercalada...

        É qualquer coisa que não posso

        Ouvir senão em segredo,

        E que talvez não seja nada.


Deixa-me ouvir... Não fales alto!

Um momento!... Depois o amor,

Se quiseres... Agora cala!

        Ténue, longínquo sobressalto

        Que substitui a dor,

        Que inquieta e embala...


O quê? Só a brisa entre a folhagem?

Talvez... Só um canto pressentido?

Não sei, mas custa amar depois...

Sim, torna a mim, e a paisagem


E a verdadeira brisa, ruído...

Que pena sermos dois!

Meu amor, somos dois.

Vejo-te, somos dois...

(Fernando Pessoa)

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